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Foto do escritorRegina Mota

Um Apólogo, Machado de Assis

ERA UMA VEZ uma agulha, que disse a um novelo de linha:

— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir

que vale alguma coisa neste mundo?

— Deixe-me, senhora.

— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar

insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem

cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu.

Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

— Mas você é orgulhosa.

— Decerto que sou.

— Mas por quê?

— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é

que os cose, senão eu?

— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem

os cose sou eu, e muito eu?

— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro,

dou feição aos babados...

— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por

você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...

— Também os batedores vão adiante do imperador.

— Você é imperador?

— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo

adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e

ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se

disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao

pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano,

pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser.

Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor

das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana —

para dar a isto uma cor poética. E dizia a

agulha:

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que

esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os

dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.

A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era

logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não

está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava

resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de

costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano.

Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou

ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o

baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a

vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto

necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado

ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a

linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:

— Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa,

fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com

ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira,

antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e

não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai

gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que

não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando

a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!


Fonte:

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.

Texto proveniente de:

A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>

A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo

Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por:

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

(http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/literat.html)

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