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Foto do escritorRegina Mota

Textos Apócrifos, Dráuzio Varella

Sou contra a prisão perpétua, mas sou a favor dela para quem escreve textos apócrifos na internet.


Segundo o “Dicionário Houaiss”, apócrifo é um texto falsamente atribuído a um autor ou de cuja autoria se tenha dúvida. Ele cita como exemplo existirem várias poesias apócrifas atribuídas a Luís de Camões por seus editores haverem introduzido em sua lírica textos de outros poetas.


Outro caso célebre de intromissão apócrifa ocorreu com o genial Jorge Luis Borges, que jamais alinhavaria as mediocridades contidas naquele que acabou divulgado como o mais popular de seus poemas: “Se pudesse viver novamente minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros... tomaria mais sorvetes... andaria descalço...”. Alguém imaginaria Borges, que passou a vida entre os livros, pelas ruas descalço lambendo um sorvete?


Mas foi com o advento da internet que a falsidade autoral chegou ao apogeu. Escritores e jornalistas como Carlos Heitor Cony, Arnaldo Jabor, Veríssimo e outros foram vítimas desse desrespeito.


Comigo já havia acontecido duas vezes. Na primeira, um amigo me enviou por e-mail uma crônica com minha foto sorridente, na qual eram ressaltadas as virtudes do companheirismo entre os casais. No final, esse amigo acrescentava: “Que coisa melosa! Seu nível está cada vez mais baixo”.


Fiquei indignado e procurei saber como provar minha inocência. Descobri que essas coisas são lançadas na rede e se disseminam feito os boatos; impossível localizar de onde partiram.


Dias depois, fui cumprimentado por várias pessoas pela autoria desse “texto maravilhoso” que uma apresentadora de TV, comovida, havia lido num programa matutino.


Meses mais tarde, com o título de “A Porta do Lado”, surgiu outra página apócrifa com minha foto e assinatura. Tomei conhecimento de sua existência ao receber novas congratulações pelas “sábias palavras” nela contidas. Ao lê-las, no entanto, não pude perceber tal sabedoria e fiquei morto de vergonha outra vez.


Entusiasmados talvez pelo sucesso dos escritos anteriores, os responsáveis por eles lançaram um terceiro em meu nome: “A Arte de Não Adoecer”. Por tratar de um tema de saúde, desta vez achei conveniente afirmar publicamente que nada tenho a ver com ele.


Já no primeiro parágrafo o autor demonstra ter a mente infestada de certezas: “Se não quiser adoecer, fale de seus sentimentos. Emoções e sentimentos que são escondidos, reprimidos, acabam em doenças como: gastrite, úlcera, dores lombares, dor na coluna. Com o tempo, a repressão dos sentimentos degenera até em câncer”.


E segue nessa linha para chegar a um final de rara inspiração poético-filosófica: “O bom humor, a risada, o lazer, a alegria recuperam a saúde e trazem vida longa. A pessoa alegre tem o dom de alegrar o ambiente em que vive. O bom humor nos salva das mãos do doutor. Alegria é saúde e terapia”.


Embora já tenha recebido elogios por mais essas “sábias palavras”, tomo a liberdade de deixar claro que só um escritor primário, um médico ignorante ou alguém dotado de ambos os atributos assinaria um descalabro tão pretensioso.


A ideia de que através da mente conseguimos controlar os males da carne sempre encantou o homem. Conviver com a fragilidade inerente à condição humana, que pode ser extinta por um evento imprevisível e tantas vezes aleatório como a doença, é inaceitável para muitos. A história da medicina é povoada de feiticeiros, pitonisas, pajés, médiuns e exorcistas especializados na arte de expulsar os maus fluidos e os espíritos que se apossaram dos enfermos.


No século 20, quando as pessoas mais cultas começaram a sentir desconforto com a ideia de tratar pacientes por meio de intervenções sobrenaturais, os pensamentos de Sigmund Freud deturpados por gente que só ouviu falar de seus trabalhos em porta de botequim caíram como uma luva para explicar a doença como resultante de processos engendrados pelo cérebro, de forma consciente ou não.


A ideia de que o subconsciente tem esse poder é imbatível: mesmo jurando por todos os santos que você nunca pensou de determinado jeito, seu subconsciente poderá ser incriminado. Caiu de cama? Também, neurótico como você é! Não consegue melhorar? Também, com esse negativismo! No fundo, você não quer ficar bom!


Travestida de interpretação psicanalítica, essa filosofia de almanaque nada mais é do que a versão contemporânea da prática secular de atirar no doente a culpa pela doença. Na Idade Média, a hanseníase acometia apenas os ímpios que desafiavam a ira do Senhor; no século passado, morriam de tuberculose as moçoilas desiludidas e os rapazes devassos e, mais recentemente, adquiriam Aids somente os promíscuos.


Esquecer que a hanseníase e a tuberculose são causadas por bactérias desinteressadas daquilo em que pensam seus hospedeiros, a Aids, por um vírus alheio a julgamentos morais, e o câncer, por interações de alta complexidade entre o DNA celular e o meio externo é ridículo.


É lógico que o psiquismo interfere e é influenciado por todos os processos orgânicos. A interação é tão íntima que a separação didática entre corpo e mente é tema do tempo de Descartes; na medicina moderna, ninguém mais perde tempo com ele. Atirar nos subterrâneos da consciência a culpa das moléstias que nos afligem, desculpem, é ignorância em estado bruto superestimar os poderes da mente na gênese e no tratamento delas também.


FOLHA DE S. PAULO, 22/01/2005.

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