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Foto do escritorRegina Mota

O céu da boca, Carlos Drummond de Andrade

Uma das sedes da nostalgia da infância, e das mais profundas, é o céu da boca.

A memória do paladar recompõe com precisão instantânea, através daquilo que comemos quando meninos, o menino que fomos. O cronista, se fosse escrever um livro de memórias, daria nele a maior importância à mesa de família, na cidade de interior onde nasceu e passou a meninice. A mesa funcionaria como personagem ativa, pessoa da casa, dotada do poder de reunir todas as outras, e também de separá-las, pelo jogo de preferências e de idiossincrasias do paladar — que digo? da alma, pois é no fundo da alma que devemos pesquisar o mistério de nossas inclinações culinárias.

A mesa mineira era grande, inteiriça e de madeira clara, só mais tarde, no “tempo do Venceslau”, substituída pela novidade da mesa elástica, que divertia a gente, mas era uma ruptura com o quadro estático da casa imperial. À esquerda e à direita, estiravam-se dois bancos compridos, sem espaldar, em que irmãos e parentes em visita se sentavam por critério hierárquico. À cabeceira, na cadeira de jacarandá e palhinha, o pai presidia. Não era hábito convidar ninguém para almoçar ou jantar; quem chegasse à hora refeição, abancava-se e enrolava o guardanapo no pescoço. A ausência da etiqueta permitia visitas a qualquer hora; e essa era mesmo preferida por alguns, desejosos de variar de tempero. Comida havia para todos, e sobrava sempre, não por ser má, senão porque a fartura era condição da família burguesa, fazia parte do status, e os donos da casa se envergonhavam com a insuficiência de um prato. A mãe praticamente não se sentava ocupada em servir a todos, de sorte que ia comer no fim, ou “lambiscar”, como fazia de preferência.

Contudo, essa comida era sóbria na variedade, para não dizer rude. Muitos pratos na mesa — sempre de seis a oito. Todos de composição singela, alguns seriam antes elementos de prato, que combinavam ao capricho do comensal. Olhando para trás no tempo, o suposto memorialista encontra a larga travessa de carne assada, a galinha completa, o angu (que merece notícia mais desenvolvida). O feijão se convertia em tutu para acompanhar a carne de porco dos domingos e dias de festa. Domingos em que se oferecia aos garfos a alta empada com recheio de galinha e azeitonas pretas — o recheio, aqui, figura na absoluta precisão do termo, pois se estufava de tão denso amálgama, ao contrário dessas empadinhas modernas, que estalam e furam a um leve toque, encerrando mais vento que substância. Nobres empadões da Rua Municipal! Mesmo aos “enjoados”, que não vos distinguiam com sua predileção, porque apenas “bicavam” os pratos entupitivos, não se eximiam a admirar a majestade arquitetônica de vosso porte, no centro da mesa repleta.

A comida, imune a influências no meio ilhado entre montanhas, era simples, simples a lembrança que deixou; e quem dela se nutriu quase sempre torce o nariz aos requintes, excentricidades ou meras variedades de outras terras.

ANDRADE, Carlos Drummond de. A bolsa & a vida. In: _____. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1984. p. 878-9.

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