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  • Foto do escritorRegina Mota

Muletas de linguagem, Affonso Romano de Sant'Anna

Vocês já repararam que os paulistas deram para começar suas frases com um “então”?

A primeira vez pensei que fosse cacoete de uma conhecida minha. Ela começava a conversa sempre com um “então” e, ao primeiro “então”, seguiam-se outros “entões” na abertura de todas as demais frases. Daí a pouco, acho que já tinha “então, como vai?”, “então, bom dia”, só faltava chegar no “então, antão!”.

E o “então” era algo enfático, pois havia uma pausa, quase um suspense, algo entre a vírgula, o ponto e vírgula e até mesmo dois pontos. Era o prenúncio de alguma coisa. Sim, parecia que ela ia dizer algo grave, revelar, dar uma explicação final que, afinal, não vinha.

Simplesmente era uma muleta linguística. Daí comecei a observar que os paulistas todos estão falando assim, seja na televisão, no rádio, nas ruas e lojas. E, outro dia, uma filha me chegou em casa com esse “então”. “Então”, pensei, a coisa está ficando grave. O “então” invadiu minha praia.

Isso está se parecendo a uma outra expressão que invadiu a fala de todo mundo e que foi propalada pelo presidente Lula. Refiro-me a esse “até porque”. Lá vai a pessoa falando, pode ser um feirante, um entrevistado, sobretudo políticos que se contaminaram com a fala presidencial, “até porque” vivem ali ouvindo isso dia e noite. Não tem jeito. Não se fala mais “mesmo porque”, nem “sobretudo” ou coisas que tais. Tem que ser “até porque”.

Há décadas, venho observando esses cacos de linguagem. Sugiro (é um vício antigo) que alguém faça, se ainda não fizeram, uma tese sobre isso. Tinha uma conhecida, por exemplo, que ia falando e, de repente, metia na frase um pererê, pererê. Por exemplo: “Ela chegou lá em casa, sentou-se à mesa e pererê, pererê, acabou contando...”

Outra variante disso é o “parará, parará”. A última vez em que tentei achar tais ruídos no dicionário não encontrei. E fiquei pensando como é difícil as pessoas aprenderem uma língua estrangeira. Nenhuma gramática nossa se refere a isso, como não se refere também a essa mania de falar “assim”. Esse “assim” é uma calamidade. E, agora, vem colado ao “tipo assim”. São palavras que não adicionam informação alguma, apenas marcam ritmo e dão tempo subjetivo para o falante organizar seu pensamento ou parecer que tem pensamento. E, de repente, isso, que tinha que ser acidental e acessório, acaba dominando todo o discurso.

Toda língua tem esses cacos. Os americanos tinham mania de ficar mascando uns ruídos ahm... ahm... ahm –, marcando intervalo das frases, isto antes de entulharem tudo com todas as variações de fuck. Quer dizer: “então”, aquela língua de Shakespeare, que diziam ser tão rica, acabou convertida, “tipo assim”, numa única palavra. “Então”, no princípio era o fuck. E, como consequência, veio o Bush.

No caso brasileiro, existe por aí uma linguagem considerada jovem, que acaba sendo o enfileiramento só desses cacos, e já não estranha a gente ouvir coisas assim: “Cara, tipo assim, aí, cara, pô, vou te contar, uhaal! Pirou, cara! Tipo assim, pô”.

Isso se parece peça de lonesco. Peça de Beckett.

Nos estudos de linguística costumam dizer que isso pode ser chamado de “linguagem fática”, “tipo assim”, quando você diz “alô” no telefone ou um “aí” no meio da narração. Mas o mais sintomático é que esse termo foi primeiro usado pelo antropólogo Malinoswsky, no século 19, estudando comunidades primitivas. “Então”, acho que estamos mais primitivos que nunca. As provas estão nas tatuagens e grafites por aí, sem falar nas pessoas pulando nas modernas cavernas chamadas boates.

“Então” lhes digo que, mais uma vez, os mineiros, como diria meu pai, nesse assunto, dão um quinau, pois conseguimos elevar a linguagem fática ao mais puro requinte da comunicação. Dois mineiros conversando são capazes de usar todos os elementos da linguagem fática, essas palavras que não significam nada e, no entanto, estabelecer uma rica comunicação.

E essa arte atinge o seu virtuosismo supremo quando dois mineiros conversam em silêncio.

Que papos!

Que excelsa comunicação!


SANT’ANNA, Affonso Romano. Tempo de delicadeza. Porto Alegre:L&PM, 2007.p.123-5

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